Essai
Nouvelle parution
Costa Lima Histoire, fiction, littérature

Costa Lima Histoire, fiction, littérature

Publié le par Bérenger Boulay (Source : séminaire de François Hartog)

Luiz Costa Lima

Histoire, fiction, littérature

(ouvrage non traduit)


História. Ficção. Literatura
, de Luiz Costa Lima, 434 pp., Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2006
Isbn: 9788535908572

Présentation (site de l'éditeur):

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História. Ficção. Literaturatraz as respostas originais de Luiz Costa Lima a um desafio teóricopolêmico. Por sua condição necessariamente discursiva, a historiografianão pode prescindir da interseção com os domínios da ficção e daliteratura. Mas será isso suficiente para reduzi-la a uma espécie dediscurso ficcional?
Para o autor, é preciso destacar as diferentesmetas que orientam a escrita da história e a ficção. Assim como aficção extrapola o domínio da literatura, a história responde a umanecessidade específica do ser humano: conhecer o seu passado.
Sem negar que esse conhecimento não se realiza senão num discurso,Costa Lima ressalta que a história reivindica uma veracidade estranha àficção. Se o discurso ficcional se caracteriza pela porosidade, ohistoriográfico trabalha com uma verdade sem poros, numa aporia queameaça converter-se em blindagem contra o autoquestionamento.transp-5.gif

1. A HISTORIOGRAFIA NASCENTE

"[...] As nascentes são insondáveis" (Heródoto, Histórias, II, 28)
"[...] Das Begreifen des Menschen faßt nur die Mitte, nicht den Anfang,nicht das Ende" ("A compreensão humana apreende apenas o meio, não ocomeço nem o fim") (Gustav Droysen, Historik: 1882, 30)


1. A ESCRITA DA HISTÓRIA DO PONTO DE VISTA DE UM ALIENÍGENA

De um duplo ponto de vista, sou eu o alienígena. Desde logo porque nãome interrogo sobre a história como historiador ou, como nos casosclássicos de Hegel e Collingwood, por ser um filósofo. Importa-me ahistória como estudioso da literatura. Mais precisamente, por meintrigar a falta de investimento teórico suficiente na diferença entre fact and fiction(cf. Finley, M. I.: 1985, 18). O problema talvez nem sequer tivessemaior impacto sobre mim se me mantivesse de acordo com a sinonímiaentre literatura e ficção.
A investigação que ora se inicia partedo suposto de que a literatura tem fronteiras muito mais fluidas que aficção. Se, do ponto de vista de seus respectivos princípios deorganização, história e ficção são formações discursivas diferenciadas,o problema se aguça quando tratamos não de dois, mas de três termos. Emsuma, é como teórico da literatura que me ponho a questão da escrita dahistória. Eis a primeira marca do estranho no ninho aqui presente.
Ela se torna mais embaraçosa quando sou obrigado a reconhecer a segundamarca: não sei grego, embora tenha escolhido tratar de historiadoresgregos. Sempre considerei saudável a regra de não tratar de autores quenão pudesse ler no original. Sou levado a desrespeitá-la porque apresença, na tradição ocidental, de Heródoto e Tucídides os tornaindispensáveis à indagação que me propus. Prescindir deles porque nãoposso apreciá-los em sua formulação original equivaleria a dar umtratamento sofístico às epígrafes escolhidas: poderia dispensá-losporque as nascentes do Nilo são insondáveis e temos de nos contentarcom o que está entre o começo e o fim. Mas Heródoto e Tucídides não sãoo princípio da escrita da história; são apenas os primeiroshistoriadores de quem possuímos os textos integrais. Tornam-se osprimeiros com os quais começa a questão que nos perturba: por que nãoos considerar pertencentes à mesma linhagem homérica? Bastaria saberque eles não queriam ser assim figurados, se a razão de sua recusa -falar não de acordo com a Musa, mas a partir das investigações quereuniram ou do que viram - veio a ser constantemente contestada? Porque então não considerar o questionamento de um e outro como indício depertencerem ao mesmo campo? Mas qual campo, o da literatura ou o daficção? A solução fácil jogaria fora a criança com a água do banho.


2. SINTOMAS DO PROBLEMA

No livro que publicou pouco antes da morte, o emérito historiadoringlês M. I. Finley acusava seus colegas de se recusarem a reconhecerque a oralidade dominante no século V a.C. criava o problema insolúvelda ausência de suficientes fontes confiáveis: "Partimos da premissaerrada de supor que os gregos e os romanos consideravam o estudo e aescrita da história essencialmente como fazemos" (Finley, M. I.: 1985,14). Com a extrema sinceridade dos que sentem a morte próxima, Finleyconsiderava a impropriedade da concepção de história que se elaboraradesde finais do século XVII, com sua ênfase no confronto das fontes ena verificação de sua autenticidade, a qual não era minorada pelosachados arqueológicos, pois estes, ainda que se acrescentem às fontesescritas, não fornecem "um esquema conceitual teoricamentefundamentado" (id., 18).
A justa advertência nos fez pensar. Não deveríamos nos restringiràqueles que, de antemão, concordam com a observação de Finley? Mas se ofizéssemos não retrataríamos o estado atual dos estudos sobre ahistoriografia grega e, em conseqüência, não nos habilitaríamos a levaradiante nossa questão particularizada. Preferimos uma soluçãointermediária: partir de abordagens conformes ao padrão mais comum eentão apontar para duas (C. Meier e F. Hartog) excepcionais. Aquelasindicarão o tom dominante, de que estas divergirão, embora aqui nãotratadas detalhadamente.
Comecemos por três abordagens recentes sobre a relação entrehistoriadores e poetas, como amostragem da reflexão sobre a questão,por especialistas em história antiga. São eles K. Dover, SimonHornblower e J. L. Moles. Procurar-se-á por eles esboçar o horizonte daquestão.
O artigo do erudito inglês Kenneth J. Dover é sintomático dos conflitosinterpretativos atuais. Referindo-se a uma tradição que se estendedesde Dionísio de Halicarnasso, passa pelos comentadores medievais e seprolonga além do Renascimento, Dover observa a diferença de tratamentoconferido a historiadores e não-historiadores:

[...] Quando se trata de estudar um autor que não é um historiógrafo,os historiógrafos são tratados como autoridades e seus enunciados comodados rigorosos (hard data); mas quando o crítico ou o erudito se volta para uma obra historiográfica, trata-a como completa e evidente (self-contained and self-explanatory). (Dover, K. J.: 1983, 56)

A relevância da distinção está em que os "dados rigorosos" concernem aquestões gramaticais, lexicais e estilísticas, ao passo que a pergunta"que espécie de escritor era ele" (i. e., o historiador) não eraconsiderada. O descaso pela especificidade da escrita da história,agravado pela relevância que a retórica alcançaria, sobretudo entre osromanos, a partir do século IV a.C., levaria Flávio Josefo, no século Id.C., a escrever: "Perderia meu tempo por uma ninharia se fingisseensinar aos gregos aquilo que eles sabem melhor do que eu", pois seuspróprios autores se acusam mutuamente por suas incorreções e mentiras,e todos, depois de Timeu, "a Heródoto. [...] E não só, o próprioTucídides é acusado por alguns de haver escrito o que é falso, emborapareça ter-nos dado a história mais exata dos assuntos de seu própriotempo" (Josefo, F.: -, 1, 3, 774-5).
Tal estado de coisas, com o conseqüente menosprezo de a escritahistoriográfica conter o registro do que houve, se agravaria com aexpansão e a consolidação do cristianismo. Assim Nancy Struever acentuaque a historiografia renascentista não seria compreendida sem se levarem conta o processo de cristianização da retórica. Ao passo que, entreos contemporâneos de Tucídides e, depois, em Roma, a retórica forabeneficiada pela descrença introduzida pelos sofistas quanto àexistência de princípios primeiros e, portanto, pela força que assumiamas técnicas de persuasão, a cristianização da retórica fora nociva aoshistoriadores fosse pela subsunção do lógos a princípios que se julgavam inquestionáveis, fosse pela linguagem suntuosa:

Ao passo que Górgias vira as técnicas retóricas como mediadoras de umarealidade dionisíaca, a realidade preexistente suposta pelos dialéticosé uma realidade espiritual de necessidade absoluta, além dos fenômenose da história. (Struever, N.: 1970, 34)

E, além do marco renascentista, que mereceria um tratamento específico,como esquecer a força que a retórica cristianizada, i. e., subordinadaà teologia, conservará no barroco? Recorde-se de passagem a reflexão deseu mais famoso sistematizador. Para Emmanuele Tesauro, nenhumadiferença existia entre as obrigações textuais a que estão sujeitos opoeta e o historiador: a ambos se impunha atentar seriamente para acomposição escrita de seus argumentos. Na passagem que traduzimos,Tesauro considera exclusivamente o "estilo histórico". Ele é vistoentre as "figuras argutas", consistentes na "significação engenhosa"(Tesauro, E.: 1654, 121). Daí resulta sua crítica aos romanos Salústioe Tácito. A Salústio, "que, ostentando a breve eloqüência em vez daeloqüência e mais falando com o espírito do que com a voz, mutila osúltimos pés do período" e a Tácito, porque seus períodos "vãotropeçando, entorpecidos pelo mesmo morbo" (id., 153). Por isso mesmonão é acidental que, fora do centro de irradiação do cristianismoinstitucionalizado, um contemporâneo de Tesauro, Hobbes, desse um bastaà orgia retórica. Sem se opor frontalmente à palavra em função deadorno, escrevia:

Em uma boa História, o Julgamento deve ser eminente; porque a qualidade (goodness)consiste no Método, na Verdade e na Escolha das ações que sejam maisproveitosas em serem conhecidas. A Fantasia não tem lugar, mas tão-sóadornar o estilo. (Hobbes, T.: 1651, 1, 8, 51)

No pensadorpolítico, a história esboçava a recuperação da aporia grega, i. e., asua preocupação primeira com a verdade. Ela se generalizará a partir doséculo XIX. E que direção diversa poderia ser reconhecida naquele quese tem como o melhor conhecedor da história antiga na atualidade,Arnaldo Momigliano? Na abertura de seu ensaio sobre o Metahistory (1973) de Hayden White dirá:

Devo começar por dizer que a razão básica de meu desacordo com HaydenWhite [...] é antes acerca do futuro do que a propósito do passado.Temo as conseqüências de sua abordagem da historiografia porqueeliminou a pesquisa da verdade como a tarefa principal do historiador.(Momigliano, A.: 1984, 49)